Falar sobre o Café Santa Cruz é fazer uma viagem no tempo até meados do séc. XVI.
O Café está instalado na antiga Igreja de S. João de Santa Cruz, que fazia parte do Mosteiro de Santa Cruz. O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra foi fundado em 1131 pelo Arcediago D. Telo, juntamente com D. João Peculiar, S. Teotónio e outros religiosos, que adotaram a regra dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho.
É no reinado de D. Manuel I (1495-1521) que se desencadeia a revitalização dos diversos espaços do Mosteiro de Santa Cruz, que se encontrava em avançado estado de degradação. Para além do melhoramento e expansão das instalações, esta intervenção também previa a construção de uma condigna sepultura para os dois primeiros Reis de Portugal: D. Afonso Henriques e D Sancho I.
A Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho de Santa Cruz de Coimbra deu um forte apoio a D. Afonso Henriques (1106 – 1185) na conquista do território aos Mouros e na conquista da independência de Portugal. D. Afonso Henriques escolheu os seus escribas e os bispos para as dioceses do reino entre os cónegos do Mosteiro. O tesouro régio guardava-se no Mosteiro, bem como documentos da chancelaria régia; os cónegos celebravam o sufrágio pela rainha. O Mosteiro de Santa Cruz foi o lugar escolhido para o túmulo do rei que lhe confiou a guarda do escudo e da lança, assim permanecendo até à Batalha de Alcácer Quibir (1578).
Após a passagem por Coimbra, em 1525, do Rei D. João III (1521-1557), a reforma do Mosteiro de Santa Cruz e a instalação da Universidade vão alterar profundamente a cidade.
Em 1527 foi nomeado como Prior do Mosteiro de Santa Cruz Frei Brás de Braga. Por nomeação régia, o Prior de Santa Cruz, “O Capelão do Rei”, fazia a gestão de um vasto património material e espiritual que permitia consolidar e destacar o Mosteiro de Santa Cruz no contexto político-institucional, cultural, social e religioso do País. O Mosteiro era um espaço de encontro espiritual, de referência cultural e local de encontro dos católicos.
Entre outras, a missão de Frei Brás de Braga passava pela reestruturação das dependências conventuais modernizando e construindo edifícios, e é neste contexto que em 1530 Frei Brás de Braga manda erguer a Diogo de Castilho a Igreja de S. João de Santa Cruz, passando esta a integrar o Mosteiro a partir do lado sul.
Edificado para servir como igreja paroquial, o edifício devolve à Igreja de Santa Cruz a plena e exclusiva utilização da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, mais conhecidos por Crúzios.
Com a expulsão das ordens religiosas em 1834, a Igreja de S. João de Santa Cruz é dessacralizada e este espaço assume as mais diversas funções comerciais: armazém de ferragens e de canalizações, esquadra de polícia, casa funerária, estação de bombeiros, estação dos correios, casa de habitação. Desde o dia 8 de Maio de 1923 que o Café Santa Cruz está instalado na antiga Igreja de S. João de Santa Cruz.
Falar sobre a história do Café Santa Cruz é também falar sobre as pessoas que nos finais da primeira década do século 20 e princípios da segunda década, imaginaram e idealizaram este espaço como Café – Restaurante e uma referência nacional.
Os grandes impulsionadores deste projecto – Adriano Ferreira da Cunha, Adriano Viegas da Cunha Lucas e Mário Pais -, tiveram a audácia de restaurar e conservar um monumento que estava completamente degradado.
Após conturbado processo do projecto da fachada, iniciado em 1921, elaborado por Jaime Inácio dos Santos, tudo se resolve com alteração da fachada para aquela que hoje conhecemos. Durante este processo o edifício foi classificado como Monumento Nacional, em 11 de outubro de 1911.
No jornal “O Despertar”, no ano de 1921, ao Café que estava a ser construído eram atribuídos vários nomes como o “Café Manuelino” ou o “Café de Sansão”, designações relacionadas com a tipologia estilo da sua construção, ou pela sua localização. A Gazeta de Coimbra, em 1922, definia-o como o “Café das Donas”.
O processo de reabilitação começou pela descoberta do que havia dentro deste espaço porque tudo estaria coberto (dissimulado) com uma capa levíssima de cal na abobada, e com paredes e pavimentos, próprios de uma habitação particular que aqui existia. Tudo foi restaurado e posto a descoberto, respeitando o traçado original. (Jornal Gazeta de Coimbra – Janeiro e Agosto 1921).
A arquitetura e a decoração do Café Santa Cruz são reflexo não só da vida económica, cultural e social de Coimbra, mas também das correntes artísticas da sua época. A construção e restauro ficou a cargo de Augusto Monteiro e do seu filho José. Os vitrais da frontaria foram feitos pelos irmãos Almeida, da Cerâmica de Coimbra, e por Afonso Pessoa. Os lustres, em ferro forjado, que pendem do teto, foram executados por um artista de Coimbra – António Maria da Conceição.
A inauguração do Café-Restaurante Santa Cruz ocorre a 8 de Maio de 1923. A data foi escolhida porque o Café se localiza na Praça 8 de Maio, antigo largo de Sansão até 1874.
Nestas últimas décadas foram muitos os momentos históricos do País (económicos, sociais e políticos) pelos quais o Café passou. Em 1975, já com a gerência de Alexandre da Silva Marques, ultrapassado o período mais conturbado, em termos sociais, da Revolução de Abril de 1974, é encerrada a cozinha, por motivos económicos e financeiros, focando-se apenas no serviço de cafetaria. Permaneceu como gerente até 2004.
Em 1985 é constituída a empresa Marques, Gonçalves & Pestana, Lda., a qual tinha como sócios Alexandre Silva Marques, Arnaldo Gonçalves e Marcelino Pestana. Esta estrutura societária manteve-se até 1999, tendo neste ano Paulo Gonçalves adquirido a quota do seu Pai, Arnaldo Gonçalves.
No ano de 2001 foram realizadas profundas obras de manutenção e conservação, a cargo dos arquitetos Luísa Marques e Miguel Pedreiro.
A intervenção de reabilitação procurou realçar o seu espaço arquitetónico, retirando os elementos dissonante existentes, permitindo uma leitura do espaço arquitetónico original – um espaço de Igreja. Contemplou as seguintes medidas de intervenção: valorização do espaço arquitetónico, revisão da funcionalidade do espaço, renovação dos pavimentos, construção de um novo balcão, renovação das casas de banho e renovação do sistema de iluminação.
Tomou-se a opção de libertar a antiga capela-mor, que estava encerrada por um painel, passando esta a servir como palco para os mais variados eventos, recuperando ao mesmo tempo parte da lógica formal da Igreja original.
No ano de 2006 verifica-se a entrada de novas pessoas para gerência. Alexandre da Silva Marques vende a sua quota a Vítor de Sá Marques, e Marcelino Pestana vende a sua quota a José Cruz e a Nuno Miranda (que vende a sua participação, em Julho de 2021 a José Cruz).
Nestes últimos anos esta nova geração tenta dar o seu contributo através das mais diversas ações, como o lançamento do doce Crúzios, no dia 12 de março de 2012, e o desenvolvimento do programa “Um Café a Caminho do Centenário”, que decorre de Maio de 2022 a maio de 2023, e no qual foram planeadas um conjunto de iniciativas que pretendem dar a conhecer a longa história do Café Santa Cruz.
Em junho de 2017 o Café Santa Cruz integra o Guia de Turismo da Região Centro, publicado pelo Jornal de Notícias, onde merece o destaque como local histórico (patrimonial) a visitar na cidade de Coimbra.
Para além da atividade diária de cafetaria, o Café Santa Cruz acolhe e promove eventos que são valiosos contributos para a diferenciação da oferta cultural da cidade. São disso exemplo a edição de livros, a realização de tertúlias sobre diversas temáticas, as exposições (fotografia, pintura, instalações artísticas), os debates políticos, as apresentações de livros, as mostras de artesanato urbano e os espetáculos musicais (nomeadamente Jazz e Fado de Coimbra). É também um local palco de gravações para séries, filmes ou anúncios de televisão.
A cultura faz parte integrante do nosso menu.
A marca “Café Santa Cruz” é uma referência que está associada à história da cidade de Coimbra dos últimos 100 anos. O somatório das vivências de muitas dezenas de anos, de milhares de clientes, absorve-se permanecendo algum tempo sentados, bebendo um café, lendo um jornal, um livro ou pondo a conversa em dia com uma boa companhia.
O café é uma das feições mais características de uma terra. O viajante experimentado e fino chega a qualquer parte, entra no café, observa-o, examina-o, estuda-o e tem conhecido o país em que está, o seu governo, as suas leis, os seus costumes, a sua religião.
Levem-me de olhos tapados onde quiserem, não me desvendem senão no café; e protesto-lhes que em menos de dez minutos, lhes digo a terra em que estou, se for país sublunar.
Almeida Garrett, Viagens na minha terra. Guerra e Paz Editores, (2017), página 56